sexta-feira, 23 de março de 2007

Um simples menino


Botou na cabeça que precisava ser um cara mais comum, despreocupado, simplificar as coisas e tudo mais.

Na lojinha de frente à faculdade, o preço das roupas sem estampas estava pela hora da morte. As coisas estão mesmo muito caras. Desistiu de desembolsar a sua mesada, e foi para casa rasgar umas roupas velhas que já havia usado por mais de três vezes. Resgatou no fundo da sapateira uma sandália de plástico, dessas que o Brasil vende aqui bem baratinhas, mas que lá fora custam umas três daquelas camisetas sem estampas da frente da faculdade – a propósito: chinelas como as do garoto, com a bandeirinha tupiniquim, comercializada em Nova Iorque, eram bem raras na cidade; garantia de sucesso! Olhou para os pés, e decidiu conter seus gastos para ajudar a acabar com a fome na Etiópia. Contou para os pais que não iria mais ao pedicuro, contratado desde que uma unha encravada tinha lhe aparecido na quarta-série.

Quase perdeu a hora do seu primeiro dia na Ioga. Conseguiu um horário maravilhoso com o mais concorrido imigrante tibetano de São Paulo – talvez o único! Pegou uma graninha, deixada sobre seu laptop pelo pai enquanto dormia, juntou com suas economias oriundas do pedicuro que havia limado, e foi até lá.

Enquanto fazia suas piruetas e todos os seus “ohnnnnnnnnnnns”, deixava transparecer o quão feliz estava por se tornar aquele menino simples, e o quanto creia ter acertado em depositar aquela quantia elevada nas mãos daquele picareta paraguaio, crente em ter um elo direto com o próprio Gandhi. Mas, é claro: em pleno século XXI, todos os jovens deviam se render à magia das coisas simples; é de muito melhor grado gastar com coisas super admiráveis do que se preocupar com uma infecção no dedão do pé esquerdo, por exemplo – existem coisas muito mais importantes no mundo do que um início de gangrena.

A hora do jantar se aproximava. Quando foi à cozinha especular uns quitutes, viu que uma das empregadas preparava hambúrgueres e a outra se preparava para tirar uma coca-cola do freezer. Quase vomitou diante da absurda afronta americanista diante de seus olhos. Não teve alternativa, a não ser correr logo para seu celular e ligar para o Disk-Japan - rejeitando todo o esforço das moças americanizadas, que além de limpar todos os 1500 m² de sua casa, em cerca de meia hora preparavam a comida, com a esperança dele não reclamar com os pais e elas não perderem os 350 reais mensais. Porém, não foi possível ligar para os japas. O Playstation 2, jogado no meio do quarto, topou com seu dedão do pé esquerdo. O dedão chutou a dor para cima, arrepiando as partes mais desprovidas de proteção de seu corpo, rasgando-lhe a garganta com uma terrível dor que estourou nos ouvidos de todos os seguranças, jardineiros, copeiros, e mais meia dúzia de pessoas sem nome que dependiam de suas vontades para viver.

Uma topada, uma dor, um grito, uma escuridão, que só teve fim quando acordou no hospital. Desmaiou de agonia. Seus pais demoraram a distinguir seu filho dos demais. Estava crescido, barbudo, e por cerca de dois meses mal se viam em casa – uma grande sala de estar, seguida de uma sala de jantar, ainda vizinha de uma imensa sala de jogos, dividia seus quartos, e por conta da gangrena, não mais o rapaz visitava os pais; e por conta da negligência, não mais o casal visitava o rebento.

O doutor retornou até lá, medicou, e os mandou para casa. O menino foi se divertindo até o carro. Orgulhoso e não querendo explorar o pobre motorista, que esperava a família do lado de fora do pronto-socorro, foi até o carro sozinho, divertindo-se com o carrinho-motorizado que acabava de ganhar.

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