quinta-feira, 29 de março de 2007

Café extremo


- Dois cafés, por favor! Um sem açúcar.

Ele estava só, mas já armava o bote. O sem açúcar era o dele. Não era nenhum diabético com aversão a aspartame, só preferia uma bebida que condissesse com seu estado de espírito - estado esse, constante.

Chamou a moça que pedia um café adoçado no balcão, ao seu lado:

- Já pedi o seu. Sente-se.

A menina estranhou, nunca vira o sisudo homem lá. Desgostava aparentemente conhecê-lo e não atinar de onde. Nesses ligeiros segundos que precederam sua réplica, a menina recorreu à memória: sem sucesso. Ainda visitou de repente os lugares que freqüentava, e nenhum ambiente e seus respectivos climas lhe refrescavam a fronte. Beirando os 30, cogitou que nem só com as rugas uma mulher deve se preocupar. Ainda recorreu ao Nelson Rodrigues, nesse escasso intervalo: “toda mulher bonita é um pouco a namorada lésbica de si mesma”. O cabelo estava bem penteado, o decote permitia a qualquer sujeito com boa vontade vislumbrar o seu umbigo, a saia colada justificava as ancas avantajadas. Um “VIVA!” à pensão do ex-marido, gasta com quatro idas semanais à academia, sacolas e mais sacolas com roupinhas que constroem corpões e cosméticos aos rodos.

Nunca li Nelson Rodrigues, mas as citações em que fitei os olhos me tentam a mudar essa situação. Não pretendo odiá-lo nem idolatrá-lo. Analisarei friamente a personalidade ímpar que pintam por aí. Ok. Não conseguirei fazer isso.

Peca quem presume que seu título de menina provém de seus cuidados com a aparência. Olhares e sorrisos são muito mais capazes do que qualquer par de belas pernas – contudo, essa dupla também é muito eficiente.

Foi até o senhor sem dizer nada. Sentou-se delicadamente no banco vizinho, trançou um joelho sobre o outro e parou a mão peluda que iria sacar um cigarro do bolso do paletó:

- O conheço?

Quem sabe ela desferindo a pergunta com indignação ou com um tom de dúvida, ele mantivesse as sobrancelhas grudadas uma a outra. Mas não. Vestindo a teoria lançada acima, ela era dessas em que as pernas são dois pedaços de carnes ambulantes, se comparadas ao olhar e ao sorriso. E foi com eles indagado, o antes sinistro homem. Ele sentiu também a sua meninice brotando no peito, em detrimento de qualquer esboço de ereção que se desenhava:

- Não. Quer dizer... Talvez já tenha me visto na pracinha que fica aqui perto. Costumo ler o jornal bem cedo por lá, pelo sol agradável que chega pela manhã nessa época do ano!

E não por inocência, mas por perceber o desconforto que causou, atirou indecência:

- Lê jornal ou observa as jovens colegiais levando suas saias rodadas ao vento, para o disparate de velhos que não temem por suas netas?

Os providenciais cafés chegaram, interrompendo o início de discussões que durariam anos. Os cafés estavam trocados, e cada um tomou o do outro em um gole só, sem perceber o engano.



2 comentários:

Pieda disse...

caralho.
a despeito de ambiguidades:
voce me toca.

esse era o comentario que eu ia fazer durante a leitura.
depois que li o final, fiquei sem palavras

...

Unknown disse...

O seu texto envolve o leitor. Gostei muito da parte dos "pedaços de carnes ambulantes"!!!