sexta-feira, 30 de março de 2007

Grupos de estudo

Se pudesse virar do avesso para não mostrar a cara, certamente já estava com as carnes à mostra. A moça não se agüentava de vergonha. O escárnio pessoal fez com que ela morresse pelo menos metade do que tinha de vida.

Ainda seguindo todo o tremor do corpo, a mão alcançou as chaves sobre a cômoda. Trancou e bateu a porta, com tanta força, que ela mesma se assustou com o barulho.

- Está tudo bem?

- Sim, algum problema? – Devolveu rispidamente a pergunta à velha vizinha, que percebera seu desconforto ao sair do apartamento abandonado.

* * *

Já estava desconfiada há semanas, ressabiada com todas as histórias fabricadas por sua mente cansada. Ninguém chegou para dizer nada. Não foi preciso. Ela mesma tomou suas próprias conclusões sobre os fatos que supunha. Mas, vamos lá, explicar bem direitinho, por que está tudo meio confuso, mesmo:

Bonita moça. Nada de mais, mas bonitinha. Sempre ajeitadinha. Cabelo bem alinhado, blusa de alça fina permitindo os belos ombros se exibirem. Nada de mais, MESMO. Até que chamava a atenção por onde passava. Os meninos sempre comentavam, desde a época do colégio, uma das mais cobiçadas – e a que mais cobiçava. Jamais foi a queridinha da turma, porém tinha sucessivamente com quem passar as tardes de estudo. Estudava com uma meia dúzia de coleguinhas por dia, ou mais, talvez aí o motivo de ser tão adorada – era uma máquina de estudar. Mas, pensando friamente, ela realmente não era nada de mais.

Cresceu, continuou ajeitadinha e estudiosa, mas agora só tinha um companheiro de estudos. O rapaz era igualmente estudioso. Conheceram-se num grupo de estudos da faculdade. Paixão à primeira estudada. Combinaram tanto, TANTO, que decidiram desde então não dividir sabedoria com mais ninguém.

Formada e casada há cerca de 35 anos, desajeitou-se. Desleixo não, mas o tempo é uma praga avassaladora, destruindo em turbilhão por onde atravessa. Os ombros charmosos confundiam-se muito bem com cabides em uso. O seu rapaz se tornara senhor. E, se ela havia perdido a gana pela didática, em segredo ele ainda mantinha a prática científica. Lecionava antes do trabalho, para uma jovem, nova na empresa em que ganhava a vida. Menina aplicada e prestimosa, logo superaria o professor.

Trataram por telefone, no final da noite anterior, de repassar algumas lições. A casa da garota seria dedetizada, e como a esposa não estaria por lá pela manhã, o senhor transferiu as aulas daquele início de dia para um apartamento abandonado, vizinho à sua própria residência.

Como imaginado, a esposa acordou antes que ele. Tinha exame de sangue marcado, depois toparia com uma amiga para desjejuar. Não notaria nada. Tardaria a retornar. Ele levantou, tomou café deixado sob a mesa, arrumou a cama, e a discípula logo tocou a campainha. Atendeu, cumprimentou, abraçou, e logo começou a ensinar ali mesmo, em sua própria sala – era grande a sede por ministrar.

Examinou a desenvoltura da garota – “já esta quase mestra”, pensou. “Se a esposa me pega, estou fritou”, refletiu. “Que barulho é esse?”, falaram! (tempo) “Ela não demorava?”, ouviu! “E agora?!”, respondeu!

O telefone. A mulher perguntando se a guia do exame estava na escrivaninha. Estava subindo para pegar.

Correram o mais depressa possível, para camuflar as evidências do curso! Guardou o lápis, enquanto ela fechava o estojo! Dispararam para a porta dos fundos! A menina rompeu a passagem e logo estava fechada no apartamento que ele havia arrumado.

Tremia feito óleo na panela. Tentou manter as aparências. Buscou as chaves na mesa ao lado da porta, simultaneamente ao ouvir a chegada da mulher do professor - que não era nenhuma imbecil, possuía vasta experiência acadêmica.

O dialogo prefacial do texto decorreu, confirmando que o bom professor nunca é perfeito.

Escada

Bate-estaca no peito
O pleito é duro e de batalha
Maltrata o sujeito
Suja a matraca de tanto falar merda
Prepara as cerdas que já é hora de escovar

Escova aqui, escova lá
- Ela vai descer a escada!
Espera
Pecado

Parada e nua na sua frente como quem quer lutar de novo

quinta-feira, 29 de março de 2007

Café extremo


- Dois cafés, por favor! Um sem açúcar.

Ele estava só, mas já armava o bote. O sem açúcar era o dele. Não era nenhum diabético com aversão a aspartame, só preferia uma bebida que condissesse com seu estado de espírito - estado esse, constante.

Chamou a moça que pedia um café adoçado no balcão, ao seu lado:

- Já pedi o seu. Sente-se.

A menina estranhou, nunca vira o sisudo homem lá. Desgostava aparentemente conhecê-lo e não atinar de onde. Nesses ligeiros segundos que precederam sua réplica, a menina recorreu à memória: sem sucesso. Ainda visitou de repente os lugares que freqüentava, e nenhum ambiente e seus respectivos climas lhe refrescavam a fronte. Beirando os 30, cogitou que nem só com as rugas uma mulher deve se preocupar. Ainda recorreu ao Nelson Rodrigues, nesse escasso intervalo: “toda mulher bonita é um pouco a namorada lésbica de si mesma”. O cabelo estava bem penteado, o decote permitia a qualquer sujeito com boa vontade vislumbrar o seu umbigo, a saia colada justificava as ancas avantajadas. Um “VIVA!” à pensão do ex-marido, gasta com quatro idas semanais à academia, sacolas e mais sacolas com roupinhas que constroem corpões e cosméticos aos rodos.

Nunca li Nelson Rodrigues, mas as citações em que fitei os olhos me tentam a mudar essa situação. Não pretendo odiá-lo nem idolatrá-lo. Analisarei friamente a personalidade ímpar que pintam por aí. Ok. Não conseguirei fazer isso.

Peca quem presume que seu título de menina provém de seus cuidados com a aparência. Olhares e sorrisos são muito mais capazes do que qualquer par de belas pernas – contudo, essa dupla também é muito eficiente.

Foi até o senhor sem dizer nada. Sentou-se delicadamente no banco vizinho, trançou um joelho sobre o outro e parou a mão peluda que iria sacar um cigarro do bolso do paletó:

- O conheço?

Quem sabe ela desferindo a pergunta com indignação ou com um tom de dúvida, ele mantivesse as sobrancelhas grudadas uma a outra. Mas não. Vestindo a teoria lançada acima, ela era dessas em que as pernas são dois pedaços de carnes ambulantes, se comparadas ao olhar e ao sorriso. E foi com eles indagado, o antes sinistro homem. Ele sentiu também a sua meninice brotando no peito, em detrimento de qualquer esboço de ereção que se desenhava:

- Não. Quer dizer... Talvez já tenha me visto na pracinha que fica aqui perto. Costumo ler o jornal bem cedo por lá, pelo sol agradável que chega pela manhã nessa época do ano!

E não por inocência, mas por perceber o desconforto que causou, atirou indecência:

- Lê jornal ou observa as jovens colegiais levando suas saias rodadas ao vento, para o disparate de velhos que não temem por suas netas?

Os providenciais cafés chegaram, interrompendo o início de discussões que durariam anos. Os cafés estavam trocados, e cada um tomou o do outro em um gole só, sem perceber o engano.



Remoenda

Tem dias em que somos faceiros
De cabeça
Há um mundo tentando caber num Brasil

Busquemos esquecer detalhes e abraçar amplidões
Não há nada
Mesmo raspinhas ou milhões delas
Dúplices, casebres
Mesmo pensar nisso tudo, não há
Se ao anão cabe, ao olhar fixo, joelhos
Ao contrário, cabe o que?

Compactemos todos
- Bem amassadinhos como eu imagino -
Os sentimentos inclassificáveis, junto aos de todos nós

É que o menino de colo perguntou à mãe:
- Por que é incógnita a mim, a falta que ele sente?
Ela silenciou, ainda sem saber o nome da solidão dos outros.

segunda-feira, 26 de março de 2007

Quando a idade roubou a Liberdade?

Crescemos e amadurecemos – envergonhamo-nos. Tudo é cerimônia, mãos tímidas e perdidas. Vozes graves em timbre e recato. Não existe mais sermos amigos em cerca de uma hora, nem dar abraços sem pudor. Um encostar de rostos. São dois beijos no ar, de bochechas coladas para que os lábios não as toquem. Três, buscam demonstrar mais intimidade – mas já com responsabilidade e o intuito garantido de casamento. Tudo é cerimônia quando há barba, ou se a menstruação abre passagem para encargos de mulher.

De só uma coisa à vergonha não se incumbe: compostura. Cogitamo-la como sinônimo de recato, decência, dignidade etc., quando mais nos caberia a utilização da reserva, que busca a preservação aparente da moral. A etiqueta mal intencionada - segundas intenções? – e o decoro, fazem com que a modéstia seja, como se espera, cirurgicamente nítida, por mais que possa beirar o paradoxo, nesses meandros.

As palavras parecem um pouco mais difíceis também, visto o texto que se decorre aqui. Quando nos resumimos a um metro, somos falastrões sem medo de errar, já que qualquer deslize na norma culta da fala é motivo para risinhos de fofura e carinhos, tornando-se histórias novas para contar sobre os filhos. Já quando dos pelos na cara e da sangria mensal já delatada, tudo é calma e ponderação na hora de papear. Seja para a gíria nova - bem empregada - da estação, ou para o estabelecimento e manutenção da bela e complicada língua - que nos separa do resto dos americanos subdesenvolvidos -, nosso dialeto é obstáculo e instrumento da vergonha.

Mas, e o que adquirimos junto ao tempo? Contra a corrente da vergonha, a falta dela na cara. Sim, sim. Nos tornamos caras de pau. Sem vergonhas, claro, em um processo mantenedor de brilho e rigidez. Importamo-nos muito mais em ter para ser, em precisar para poder, em acontecer para pensar, e não nos importamos nem uma gotinha com o que isso significa. ALARME: Eis a negação da capacidade, do Homem e da verdade. Assumimos a vergonha como caráter.

Confesso: a risada de qualquer um é estopim para as minhas. E admito igualmente, contê-las sempre que há algum desconhecido. Não entendo e nem procuro entender. Passo as mãos na boca, abro-a de sono, espreguiço-me, faço ene coisas que buscam camuflar minha alegria. Sorriso é apêndice do espelho da alma – esse são os olhos! Agora, já mais compenetrado na busca de uma explicação, dentre muitas teorias, a que mais me atenta para a realidade, é a da vergonha – DE NOVO! Sinto mesmo vergonha de cair sempre na falta ou no excesso da bandida, mas puthaquelamanga, é sempre ela que eu não posso transparecer? Ah não, a vergonha novamente, dela própria, em um ciclo vergonh... AH! Cansei-me desse sentimento, que de agora em diante, recuso-me a pronunciar.

Desse estado de espírito, proponho-me apenas constatar sua existência e falta simultâneas, as quais opto por ignorar e apenas sentir. A linha tênue, desse modo, sou eu. Que não por acabrunhar-me, mas por comodismo, espero realizá-la lindamente, e mesmo que acanhado, torça sempre para não se ausentarem motivos de discernimento entre a loucura e a insociabilidade. Seja naifa de corte fino e certeiro, ou canivete de cortar unha - carente de fio -, vinde a mim a verborragia! Que me adiante apenas ser, e não a necessidade da posse, percebendo-me quase um pré-humano normal, de cerimônias natas da primeira realidade – mesmo sabendo que é impossível alcançar o nível de aceitação pessoal, compatível com a anulação total da vergonha (ops!).

À controvérsia, há controvérsias

Eu sei que isso não conta
Mas isso é muito importante
nesse momento

À controvérsia
Há controvérsias
graças à Deus

Do simples sim ao não
Rimando pano de prato com esfregão
Limpo seu porta-retrato com pano de chão

Do tolo humilde ao sabichão
Apaixonei-me pela doce aventura entre os extremos
E não temo parecer confuso
Abuso sim, da contradição

sexta-feira, 23 de março de 2007

Um simples menino


Botou na cabeça que precisava ser um cara mais comum, despreocupado, simplificar as coisas e tudo mais.

Na lojinha de frente à faculdade, o preço das roupas sem estampas estava pela hora da morte. As coisas estão mesmo muito caras. Desistiu de desembolsar a sua mesada, e foi para casa rasgar umas roupas velhas que já havia usado por mais de três vezes. Resgatou no fundo da sapateira uma sandália de plástico, dessas que o Brasil vende aqui bem baratinhas, mas que lá fora custam umas três daquelas camisetas sem estampas da frente da faculdade – a propósito: chinelas como as do garoto, com a bandeirinha tupiniquim, comercializada em Nova Iorque, eram bem raras na cidade; garantia de sucesso! Olhou para os pés, e decidiu conter seus gastos para ajudar a acabar com a fome na Etiópia. Contou para os pais que não iria mais ao pedicuro, contratado desde que uma unha encravada tinha lhe aparecido na quarta-série.

Quase perdeu a hora do seu primeiro dia na Ioga. Conseguiu um horário maravilhoso com o mais concorrido imigrante tibetano de São Paulo – talvez o único! Pegou uma graninha, deixada sobre seu laptop pelo pai enquanto dormia, juntou com suas economias oriundas do pedicuro que havia limado, e foi até lá.

Enquanto fazia suas piruetas e todos os seus “ohnnnnnnnnnnns”, deixava transparecer o quão feliz estava por se tornar aquele menino simples, e o quanto creia ter acertado em depositar aquela quantia elevada nas mãos daquele picareta paraguaio, crente em ter um elo direto com o próprio Gandhi. Mas, é claro: em pleno século XXI, todos os jovens deviam se render à magia das coisas simples; é de muito melhor grado gastar com coisas super admiráveis do que se preocupar com uma infecção no dedão do pé esquerdo, por exemplo – existem coisas muito mais importantes no mundo do que um início de gangrena.

A hora do jantar se aproximava. Quando foi à cozinha especular uns quitutes, viu que uma das empregadas preparava hambúrgueres e a outra se preparava para tirar uma coca-cola do freezer. Quase vomitou diante da absurda afronta americanista diante de seus olhos. Não teve alternativa, a não ser correr logo para seu celular e ligar para o Disk-Japan - rejeitando todo o esforço das moças americanizadas, que além de limpar todos os 1500 m² de sua casa, em cerca de meia hora preparavam a comida, com a esperança dele não reclamar com os pais e elas não perderem os 350 reais mensais. Porém, não foi possível ligar para os japas. O Playstation 2, jogado no meio do quarto, topou com seu dedão do pé esquerdo. O dedão chutou a dor para cima, arrepiando as partes mais desprovidas de proteção de seu corpo, rasgando-lhe a garganta com uma terrível dor que estourou nos ouvidos de todos os seguranças, jardineiros, copeiros, e mais meia dúzia de pessoas sem nome que dependiam de suas vontades para viver.

Uma topada, uma dor, um grito, uma escuridão, que só teve fim quando acordou no hospital. Desmaiou de agonia. Seus pais demoraram a distinguir seu filho dos demais. Estava crescido, barbudo, e por cerca de dois meses mal se viam em casa – uma grande sala de estar, seguida de uma sala de jantar, ainda vizinha de uma imensa sala de jogos, dividia seus quartos, e por conta da gangrena, não mais o rapaz visitava os pais; e por conta da negligência, não mais o casal visitava o rebento.

O doutor retornou até lá, medicou, e os mandou para casa. O menino foi se divertindo até o carro. Orgulhoso e não querendo explorar o pobre motorista, que esperava a família do lado de fora do pronto-socorro, foi até o carro sozinho, divertindo-se com o carrinho-motorizado que acabava de ganhar.

quinta-feira, 22 de março de 2007

No poDIum

A vida não é dourada
Ninguém vence sempre, afinal
Mesmo os que visitam constantemente o topo
Sabem das derrotas
Dos que são melhores
- Quem ergue muito o nariz, esquece o umbigo!

A vida não é prateada
Ninguém é feliz no quase
Nos tapinhas nas costas
Nos sorrisinhos-mentiras
Atrás de alguém
- Quem abaixa sempre a cabeça, esquece a beleza do céu!

Devíamos ser batizados com bronzeador
Darmos o devido valor ao Sol
Talvez seja de lata e sem polimento
Mas deveria ser bronzeada, a vida
Ter de perder para ganhar
- Quem mantém a cabeça livre, vê do umbigo ao céu, ainda prestando atenção aos lados!

Pontapé inicial

Em versos e em prosa, opiniões e desequilíbrio verborrático desse humilde escrevente do crônico dia-a-dia.

Sou Gustavo Ferreira, estudante de jornalismo e aspirante a alguma coisa.
Espero que gostem ou desgostem.