sábado, 21 de julho de 2007

Fio d'água

CHUÁ!

Finalmente abriu a torneira. Não conseguia por muito tempo tal feito. Na verdade nem tentava; quando atinou, a ferrugem o impedia. Suor, força e concentração foram capazes de vencer o alaranjado - cor essa, a da primeira água curta que escorreu.

Depois da vitória, trancou o aguaceiro e ficou ali sentado, admirando o feito. Levantou-se, foi até a pia, esmerou seu peso em seus braços cravados na beirinha. Recaído para frente, com os cabelos turvando a visão, reabriu e manteve um fino fio d’água correndo.

Por longo período indeterminado, sentou a vista no filete que ligava a fonte metálica ao ralo também de prata, vazado no fim da cuba de porcelana. O líquido já não possuía o laranja, e escorria tão fino quanto o feixe de realidade que ainda havia.

O fio d’água se transformou em pingos, desses pinguinhos bem minguados, compassados e insistentes que às vezes nos faz levantar da cama. Ele nem percebeu e nem reclamou com quem, provavelmente, usava o chuveiro ou dava descarga, diminuindo a fluência aquática. Manteve os olhos naquela direção.

Era uma tarde muito boa aquela, grande grau de excelência. Caminhava ao seu lado a nova e sempre bem-vinda amiga. Mais alguns amigos que não se lembrava exatamente quem. Dois, sim, eram dois os outros. Quem sabe três? Enfim... Riu, desbaratinou-os, puxou a linda pelo braço macio, tão tímido e ansioso quanto o seu, e a convidou para o lugar deles.

O local já era conhecido. Lugar planejado em silêncio por ambos, até que esse descalabro silencioso calou-se diante da verdade de seus quatro olhos, colados em uma tarde anterior sem beijos de boca, mas muitos beijos de imaginação furtiva.

Correu rapidamente a trajetória até a sacada, subseqüente às enormes e estafantes fileiras de degraus, ao primeiro e menor lance de escada, ao segundo portão, às pessoas comendo e papeado e rindo e comendo e se tocando e etc, ao caminho até aos comilões, ao portão, à segunda guia cheia de camelôs, à esquina e à primeira calçada em que estavam cinco minutos atrás, entre os três ou quatro amigos já citados

Lá os dois. Em alguns momentos falantes, em outros ponderando por sorrisos tímidos. Nem a obra e os pedreiros batucando ao lado adentravam seus ouvidos tampados de emoções.

Pediu para que cantasse. Acanhado, fez rodeios. Preferiu fantasiar que havia cantado. Já que fantasiava, o fez mais um pouco. Flutuaram por lá e por fora dali, na canção que a moça pediu. Sua voz saía rouca como sempre, mas sem que movesse os lábios. Seu canto já não era seu. Talvez fosse dela, por ela assim querer. Um canto de ninguém, o canto dos dois, sem pedreiro nem pedras para atrapalhar. Milhares de tentações, apelos, e ela ali, tão mulher, tão em si, tão para o garoto, sorrisos mastigantes, armadilhas laçadas de beijos e abraços, levando-o para onde sempre quis, sem dizer não, sem mistérios, sem vergonha.

Pousaram de volta ao cantinho. Sol ardido que cedia o calor ao batente, que fritava suas mãos escoradas. Continuaram ainda por um espaço nos beijos de alma. A bonita o interpelou, demonstrando dúvidas quanto às suas vontades. Subiu temor ao rapaz. Veio o medo de perdê-la, igualmente ao de se perder.

Para cortar o receio, um beijo macio e não muito alongado. Outros vieram. E vieram ainda outras tardes, sempre tão intensas e de potencial purificador só agora percebido.

Um CHUÁ travestido de passagem de volta tomou o lugar dos pingos, então enfeitados de passagem de ida ao passado.

Em terra concreta, cerrou a torneira. O ralo engoliu o fio.

Já é tarde. Melhor dizendo, ainda é tarde. Tarde muito boa como aquela, grande grau de excelência.

Um comentário:

A intérprete da própria vida disse...

adorei...
e vamos abrir a torneira, as portas, janelas... os braços pra o desconhecido...
e tardes novas viram pra alegrar nossos dias meu querido..
sempre mto significado em cada palavra, oq me faz pensar e sentir a cada frase o teu poema.. a poesia q surge no ar..

aquele abraço compañero!